Educação e Currículo na Creche?

Ana Sarmento Coelho

Introdução

Em Portugal tem sido realizada pouca investigação acerca da Creche, designação que no nosso país é atribuída às instituições que recebem crianças até aos 3 anos. Apesar de ser socialmente reconhecido o impacto duradouro das condições em que ocorre o desenvolvimento na primeira infância, as preocupações acerca da organização da Creche como contexto educativo, susceptível de contribuir de forma positiva para o desenvolvimento e bem-estar da criança pequena, adquirem ainda pouca visibilidade em Portugal.

Todavia, é hoje inquestionável que as mudanças sociais, com especial destaque para o emprego feminino, impedem que se continue a considerar que a quem e onde ficarão confiadas as crianças, após a licença de maternidade das mães, é fundamentalmente um problema das famílias ou de cada família.

Se, ao contrário do que alguns autores continuam a considerar desejável (cf Sroufe, 1990 e Wagner e Tarkiel, 1994, entre outros), é cada vez mais frequente que a criança pequena não possa permanecer com a sua mãe, a discussão acerca das modalidades de guarda e educação deverá centrar-se na organização de modelos que garantam a resposta às necessidades da criança não só de segurança física mas igualmente de desenvolvimento afectivo, social e cognitivo.  Por outras palavras, é importante que se atribua à Creche, para além da função de guarda, uma dimensão educativa. A ideia introduzida por Caldwell (1989) de que estas duas dimensões deverão estar presentes e ser compreendidas como indissociáveis (Educare) sugere que os programas para a infância devem oferecer as componentes de educação e de cuidados sob a forma de serviços integrados, que, na expressão da autora, correspondem na sociedade ocidental actual à família alargada de outrora: “Naquilo que se refere à educação das crianças, o termo Educare é uma versão moderna para a família alargada” (Caldwell, 1995: 471).           

A Infância e a Educação de Infância como Construções Sociais

A interrogação acerca dos modos de organizar e desenvolver as modalidades de educação das crianças entre os 0 e os 3 anos parece-nos dever, em primeiro lugar, ser abordada no contexto mais alargado da sociedade actual. Neste contexto destaca-se, em particular, a tendência para que os fenómenos sociais sejam compreendidos a partir da aparente contradição entre, por um lado, a tendência das sociedades (em especial no mundo ocidental) para se estandardizarem, e, por outro, a importância que é igualmente conferida à diversidade dos contextos sociais e culturais em que as pessoas vivem, e em que portanto as crianças se desenvolvem. Nas críticas acérrimas à globalização, destaca-se, sem dúvida, o argumento de que ela é uma tendência que, embora contenha uma ideia de aproximação, entendimento e troca entre as sociedades, conduz também a uma assimilação, e por essa via a uma uniculturalidade empobrecedora (Kagan, 2001). Daí que ganhe força a ideia de ser necessário conciliar, por um lado, as vias abertas pela sociedade da informação, e, por outro, a identidade cultural, a aceitação da diversidade (cultural, étnica, religiosa ou de outra natureza), não como um obstáculo a vencer, mas como um recurso para as sociedades, em geral, e para as comunidades educativas e escolares, em particular.

O relatório publicado recentemente pela OCDE acerca das políticas e realidades da Educação de Infância em vários estados europeus reflecte também a tendência acima mencionada, ao relacionar explicitamente a compreensão das diferentes imagens acerca da criança, com as políticas e os serviços implementados para o seu atendimento presentes nos diversos países (Kagan, 2001; Moss, 2001). Tal assunção tem implícita a ideia de que a infância é uma construção social, o que implica aceitar que ela não é nem um dado universal nem natural (cf. Pinto, 1997). “A infância não é uma experiência universal de qualquer duração fixa, mas é diferentemente construída, exprimindo as diferenças individuais relativas à inserção de género, classe, etnia e história. Distintas culturas, bem como histórias individuais constroem diferentes mundos da infância” (Franklin, 1995 cit. por Sarmento e Pinto, 1997, p. 17). A noção da infância e dos sistemas que visam o seu atendimento e educação como construções sociais encontra-se também em Spodek (1993) quando, ao contestar a noção de “infância natural” como origem do currículo em educação de infância, afirma que essa ideia não se sustém na medida em que “ (...) não há nada de natural em qualquer escola mesmo na pré-escola. ... de facto todas as escolas são invenções culturais para fazer coisas às crianças, para as mudar” (Spodek, 1993, p.10).

A concepção da infância e da Educação de Infância como construções sociais tem sido igualmente reforçada pelos estudos interculturais. A comparação do modo como a educação de infância tende a ser compreendida em diferentes sociedades e culturas, ilustra bem como aquilo que em cada sociedade é julgado como apropriado (ou seja, as práticas de socialização e desenvolvimento das crianças), varia significativamente, mesmo no interior das sociedades ocidentais. O modo de compreender a infância e as práticas educativas traduz-se naquilo que em cada uma das culturas ou grupos sociais tende a ser compreendido como o “nicho desenvolvimental” (Super e Harkness, 1986 in Harkness 1992) aí considerado desejável para que a criança cresça de forma saudável. Ou seja, depende das relações que se estabelecem entre a cultura, os comportamentos parentais, as modalidades formais e informais de guarda e educação, e os resultados considerados desejáveis no que diz respeito ao desenvolvimento da criança, passando por aspectos como o modo como é regulada a vida diária das crianças e das suas famílias, o modo de cuidar das crianças e os aspectos psicológicos dominantes associados a esses cuidados.

De uma forma mais ou menos explícita cada sociedade mantém, portanto, a sua própria definição de “educação ideal”, que se reflecte nos objectivos e expectativas que organiza face ao desenvolvimento da criança e à sua socialização. No campo específico da Educação de Infância, investigação diversa tem mostrado também como quer os pais quer os educadores de diversas culturas assumem perspectivas diferentes quando avaliam os aspectos ligados à organização do ambiente educativo nas instituições, ao comportamento, qualificação e desempenho dos educadores ou especificamente à dimensão curricular (Bhavnagri & Gonzalez Mena, 1997; Fuller, Holloway & Liang, 1996; Goodfellow, 2001; Hewitt & Maloney, 2000; Hujala-Huttunen, 1996; Ojala, 2000; Weikart, 1999; entre outros).

Há muito tempo que se reconhece que a(s) cultura(s) influenciam o currículo durante a escolarização formal. No entanto, no caso da Educação de Infância, estão também em causa, como antes afirmámos, as práticas de socialização precoce e de organização dos cuidados percebidas como culturalmente relevantes e, por essa via, nucleares para cada uma das crianças e suas famílias.

A Educação e os Cuidados para as crianças entre os 0 e os 3 anos em Portugal

No relatório recente da OCDE acerca da Educação de Infância em Portugal é reconhecido que a provisão de serviços para as crianças até aos três anos não está tão desenvolvida como a que se destina às crianças entre os três e os seis anos (Ministério da Educação, 2000). No mesmo relatório é referida a ausência de dados disponíveis e fidedignos sobre as modalidades formais e informais a que os pais que trabalham recorrem para deixar os seus filhos pequenos, sendo a este propósito feita uma alusão à sugestão de Formosinho (1996 in op cit) de que uma percepção social residual tenderia a permanecer de tempos anteriores, quando se considerava que a educação das crianças pequenas era um assunto privado que dizia apenas respeito à família, parecendo que quanto mais nova é a criança mais essa percepção predomina.

Na verdade, em Portugal, ao contrário do que sucede na grande maioria dos estados membros da União Europeia, não existe uma política educativa que considere globalmente a infância, pelo menos no que se refere às crianças com idade inferior à de ingresso na escolaridade obrigatória.

A exclusão das modalidades de atendimento à primeira infância do Sistema Educativo Português, ao definir na sua  Lei de Bases (Lei nº 46 de 14/10/1986) como destinatários da  “Educação Pré-Escolar” apenas as crianças entre os 3 e os 5 anos, tem consequências que nos parecem relevantes, quer sob o ângulo organizacional quer curricular, uma vez que se acentuam as funções estritamente sociais dessas modalidades, por oposição a uma concepção “educativa” relativamente às que se destinam às crianças com mais de 3 anos.

No que se refere especificamente à organização dos cuidados e educação destinados às crianças entre os 0 e os 3 anos, em Portugal são-lhe são atribuídas duas grandes finalidades (Ministério da Educação, 2000), a saber, “apoiar as famílias na tarefa de educação dos filhos, e proporcionar a cada criança oportunidades de desenvolvimento global, promovendo a sua integração na vida em sociedade” (p. 40). A estas finalidades correspondem os seguintes objectivos específicos: 1.proporcionar o bem estar e o desenvolvimento integral das crianças num clima de segurança afectiva e física, durante o afastamento parcial do seu meio familiar através de um atendimento individualizado; 2. colaborar estreitamente com a família numa partilha de cuidados e de responsabilidades em todo o processo evolutivo das crianças; 3. colaborar de modo eficaz no despiste precoce de qualquer inadaptação ou deficiência, assegurando o seu encaminhamento adequado.

No mesmo documento é referido que a Creche, sendo uma das modalidades formais de oferta educativa existentes em Portugal para as crianças entre os 3 meses e os 3 anos, corresponde a “uma resposta social de âmbito sócio-educativo” sendo enfatizado que se destina a receber as crianças durante o período diário correspondente ao trabalho dos pais.

Como modalidades formais são ainda indicadas as amas (“pessoa que, por conta própria e mediante retribuição, cuida de uma ou mais crianças (até ao máximo de quatro) que não sejam suas, parentes ou afins, por um período de tempo correspondente ao trabalho ou impedimento dos pais”); a  mini-creche (“uma organização pequena e de ambiente semelhantes ao familiar, incluindo 5-6 crianças”); e finalmente a creche-familiar (“conjunto de amas, não inferior a 12 nem superior a 20, residentes na mesma zona geográfica, enquadradas técnica e financeiramente pelos Centros Regionais de Segurança Social, Santa Casa da Misericórdia de Lisboa ou Instituições Particulares de Solidariedade Social”) ( in op cit, p. 43). Para além destas modalidades, é ainda reconhecida no mesmo documento a existência de “oferta não formal”, constituída por entidades como familiares, amigos e vizinhos, empregadas domésticas, amas não licenciadas e baby-sitters . Relativamente a esta rede informal o próprio Ministério da Educação (1996) admite que ela resulta de uma insuficiente resposta às necessidades da população, contribuindo para a proliferação de respostas sobre as quais não é exercido qualquer controlo e que, em muitos casos, se reconhece corresponderem a contextos pouco adequados para o bem-estar e desenvolvimento das crianças.

O que nos parece de realçar desta breve referência às modalidades de oferta educativa destinada à primeira infância em Portugal, e com especial relevo no que se refere à Creche, é o predomínio de uma concepção que enfatiza a resposta às necessidades da família e a ausência de objectivos claros do ponto de vista da acção a desenvolver quer com as crianças quer com as próprias famílias. Nos objectivos atribuídos à Creche é enfatizada a noção de proporcionar “condições adequadas ao desenvolvimento harmonioso e global” da criança, a par da noção de “cooperação com as famílias em todo o processo educativo”. O papel quase estritamente suplementar em relação à família que é, aliás, atribuído de forma indistinta a estas diferentes modalidades, parecendo-nos favorecer uma concepção da Creche como uma medida cuja finalidade predominante se situa entre a mera guarda e o apoio social. Na verdade, também João Formosinho (1996a), ao caracterizar o que designa como “modelos globais sociopedagógicos de atendimento à infância” no nosso país, situa os serviços destinados às crianças até aos 3 anos predominantemente nas categorias que designa respectivamente como “serviços de cuidados e guarda” e “serviços de cuidados e de assistência social”.

Ainda que nos pareça indiscutível a dimensão relativa ao apoio social às famílias na organização destas modalidades de oferta, consideramos que a ausência explícita de intencionalidade educativa na forma como, nos documentos oficiais, se exprimem os objectivos da Creche constitui um factor crítico que importa realçar. A exclusiva referência, no que se refere aos objectivos directamente relacionados com a criança, à noção de “desenvolvimento global”, sobressai pela sua ambiguidade, na medida em que não sugere qual a concepção de desenvolvimento e de educação que lhe está subjacente. Este aspecto é aliás objecto de análise do relatório final da OCDE, que faz notar a ausência de “qualquer enquadramento curricular ou educativo” (Ministério da Educação, 2000, p. 194), aspecto que nesse relatório é relacionado com a exclusividade da tutela pelo Ministério do Trabalho e Solidariedade e consequente ausência de envolvimento na regulação destes serviços por parte do Ministério da Educação.

Da ausência de uma concepção claramente educacional acerca das modalidades de atendimento à primeira infância, nomeadamente da Creche, decorrem ainda outros aspectos igualmente identificados no relatório da OCDE como críticos neste domínio, nomeadamente, como já referimos, o menor desenvolvimento dos serviços destinados a este grupo etário, a inexistência de dados actualizados e a ausência de enquadramento curricular ou educativo sob orientação do Ministério da Educação,  a que acrescem a falta de formação específica para os que trabalham com crianças entre os 0 e os 3 anos, a ausência de uma base de igualdade no acesso aos serviços existentes por parte das famílias, a falta de qualidade de grande parte desses serviços, e ainda a ausência de um sistema coerente e coordenado que permita a sua regulação. No mesmo relatório é sugerido que se reconsidere “a divisão irrealista dos serviços num sector social e num sector educativo” (ME, 2000, p. 216), a qual é interpretada como um obstáculo ao desenvolvimento de abordagens holísticas na satisfação das necessidades das crianças e das suas famílias. “A segregação entre cuidados e educação enfraquece seriamente a coerência do sistema, causa divisão de responsabilidades e impede o desenvolvimento dos serviços globais a prestar às crianças e às famílias” (op cit, p. 217).

Esta perspectiva é aliás concordante com a que resultou de uma investigação realizada sob os auspícios da Comissão Europeia, intitulada Care Work in Europe: Current Understandings and Future Directions, onde no relatório relativo à caracterização dos serviços no âmbito dos cuidados sociais e dos seus profissionais (Moss, 2002) se afirma que a crescente utilização de expressões híbrídas como ‘early childhood education and care’, ‘early childhood education’ ou ‘educare’, tende a substituir expressões que anteriormente acentuavam a separação entre o âmbito dos cuidados e o da educação e a acentuar a sua relação de interdependência, sendo também observado que em vários países da União Europeia (Espanha, Suécia, Inglaterra e Escócia) se verifica a tendência para transferir a responsabilidade pelos serviços de atendimento à infância do âmbito da segurança social para o âmbito da educação. No mesmo relatório é, aliás, referido como em certos países o conceito de “pedagogia” (pedagogy) predomina sobre o de “cuidados” (care), pelo menos no que se refere especificamente à infância. A este respeito o caso mais paradigmático parece ser o da Dinamarca, onde o conceito de care não é utilizado na designação dos serviços relativos à infância por não implicar uma ‘dimensão desenvolvimental’, sendo embora considerado como uma das componentes, entre outras, da pedagogy. [1]

Embora a definição conceptual destes diversos termos e a análise compreensiva dos vários sistemas a que eles estão associados ultrapasse o âmbito desta nossa comunicação (nomeadamente por se tratar de uma definição complexa e rica em subtilezas em cada um dos países, como também é assinalado no relatório a que fizemos referência), o que pretendemos enfatizar é fundamentalmente a ideia de que no nosso país não existe uma definição da Creche claramente como um serviço educativo. A ausência dessa definição (que naturalmente deveria ser articulada com a explicitação da sua função social e com o desígnio de estabelecer com as famílias uma relação de complementaridade), bem como a correspondente exclusão do Sistema Educativo Português da educação dos 0 aos 3 anos, parecem-nos constituir factores críticos para a organização de modalidades e contextos de qualidade que intencionalmente se organizem como ambientes educativos susceptíveis de, utilizando a expressão de Zabalza (1998) “enriquecerem os âmbitos de experiência” da criança (p. 20).

Embora se aceite em Portugal a ideia de que “a educação pré-escolar de qualidade tem um impacto duradouro no decurso da vida ulterior da criança”, e de que por esse motivo, retomando ideias expressas por Katz e Weikart (in Formosinho, 1996: 9), “os maus serviços educacionais representam uma oportunidade perdida”, tal ideia não se estendeu  aos serviços destinados às crianças até aos 3 anos.

As consequências da ausência de clarificação da função educativa da Creche, e por essa via da sua dimensão curricular, tem sido, aliás, por nós identificada numa investigação que nos encontramos a desenvolver acerca das teorias práticas dos educadores em Creche. Nesse estudo temos verificado que a dificuldade dos educadores em explicitar a dimensão curricular da sua acção constitui um factor crítico, que muitas vezes se traduz na dificuldade em definir a sua intencionalidade educativa e em planificar e avaliar a sua acção. Temos verificado que essas educadoras têm dificuldade em construir um discurso educacional, formulando-o muitas vezes, como Munn (1994) assinalou “de trás para a frente”, ou seja, enunciando um conjunto de tarefas ou actividades que habitualmente concretizam e a que posteriormente atribuem valor desenvolvimental.

Se, como também afirma Schoonmaker (2002) o desenvolvimento do currículo é uma forma de ligar a teoria à prática e uma condição para a implementação de práticas verdadeiramente deliberativas e de qualidade, parece-nos fundamental que em Portugal se invista na definição de políticas educativas consistentes para a primeira infância, e se definam, nomeadamente, linhas de orientação curricular para a intervenção do educador em Creche.


[1] Dada a sua especificidade parece-nos interessante transcrever uma parte do relatório que se refere à Dinamarca: “A pedagogical approach is central to much ‘care work’ in Denmark; indeed it precludes viewing care work as a distinct activity or field. The Danish national report notes that there is no word in Danish for ‘care’ – and therefore no occupation of ‘carer’. What they have instead is the occupation of pedagogue, practicing pedagogy (…) (Moss, 2002, p. 20).